07 dezembro, 2014

Tempo

Outro dia minha filha foi sair do meu quarto e esticou-se na pontas dos pés, e eu pensei: que bom que ela ainda não alcança a maçaneta. O tempo me devora. É maravilhoso ver meus filhos crescerem, é maravilhoso envelhecer. Mas o tempo nos engole. Gostaria de ser mais do que sou, porque minha mente me dá rasteiras. Eterno. Como gostaria que certas coisas fossem eternas. O jeito como Manuela aperta os olhos e move sua boca em silêncio para me segredar doçuras, que eu nunca entendo. A forma como ela recria todas as coisas, pano é batom, batom é chocolate, vassoura é espada, linha é macarrão, agulha é colher. Queria que minha mente se lembrasse para sempre do seu cheiro e do seu modo maduro de refletir sobre a vida, sobre si, a forma como olha firme nos meus olhos e me aconselha a fazer a coisa certa. Gostaria que fosse eterno para mim os afagos dela e do irmão todas as manhãs, quando se abraçam e rolam na minha cama e Henrique, com a boca aberta, beija de modo intenso e babado todo o corpo de sua irmã. Gostaria de nunca esquecer-me do olhar de Henrique, azul, profundo, sabido e dos sons que emite: mamã...boaaaaa...Queria, como Manoel, amarrar o tempo no poste, mas depois voltar para soltá-lo. Soltá-lo doce e lentamente vendo se afastar de mim devagar, deixando um rastro cheiroso, para que, através do olfato, eu sempre me lembre. De Leo com Manuela aos ombros e Henrique aos braços. Da pequena pulando de todos os móveis da casa, do pequeno se arrastando pela casa, agarrando meu seio, gritando de alegria por todas as coisas. Devorando o mundo com todos os sentidos e a mais profunda alegria da descoberta. A sutileza com que ele esfrega um dedinho no outro e observa o movimento das mãos. Um cheiro suave como rastro, que me traga de volta o que vivi, de modo que minha mente não trapaceie. Outra noite Manuela foi sair do meu quarto e se pôs na ponta dos pés para abrir a porta e eu pensei: que bom. Ela ainda não alcança.

09 agosto, 2014

O pai Leo

Ela corre em sua direção de um jeito único e quase secreto, reservado aos dois, entrelaça suas mãos em volta de seu pescoço. E com olhar aguçado e animado vai até a janela dar boa noite aos lixeiros. Minha filha e meu marido possuem um mundo só deles. Permeado de bancas de jornais, histórias de dragões, venenos, quadrinhos, bichinhos e, sim, lixeiros, que docemente gritam: tchau neném. Não me esqueço a noite que antecedia a véspera de Natal, quando os dois sumiram e ao olhar pela janela os vi lá na esquina da minha rua, Manuela segurava animadíssima uma nota de 50 reais para a caixinha de Natal dos lixeiros. Era parte do mundo deles, é parte do segredo dos dois. Lembro-me que quando ela nasceu só me lembrei de beijá-la e que, seu pai, lembrou-se do carinho que Leboyer disse em seu livro, de, em ondas, massagear as costas do recém nascido. Foi com ele que ela foi a primeira vez ao dentista e depois passaram em uma banca de revistas (claro) para comprarem figurinhas que ela adora, é com ele que ela assiste a filmes clássicos como Luzes da Cidade, do Chaplin e Cantando na Chuva. Ele é o pai doce, de fala mansa, ele é o pai amigo, não a autoridade. Certo dia lhe disse: quando Manuela estiver fazendo pirraça segure seus braços, olhe nos seus olhos e diga bravo: pare! E ele, pensativo, concluiu e me disse: não sei ser um pai assim. Ele sabe ser o pai que sabe ser. O homem que é. Um homem generoso. Em seu mundo secreto com seus filhos guarda pequenas canções, sutis doçuras cotidianas. É ele quem muitas vezes acalma uma dor de barriga do caçula, Henrique. É com ele que o pequenino vai ao trocador todas as manhãs. Ficam lá por um tempo quase em silêncio e Henrique sai pronto, seco e de nariz desentupido. Ele é o responsável por me entregar Manuela com roupa descombinada, de estômago vazio, sono e risada faceira. Ele é o responsável por tantas vezes dizer: esqueci. E me mostrar que sim, está tudo bem mesmo assim. Meu companheiro e grande amigo é o parceiro das fantasias da minha filha e da paz do meu bebê. Esse pai, é o papai Leo, magrinho e tímido. Doce e querido. Um papai tão amado que sua filha quis antecipar o dia dos pais para Sábado. Chegou ao meu quarto e fechando a porta pediu-me que lhe arrumasse, rápido, antes que ele a visse. Colocou tiara de flor e vestido de festa, rasbicou cartão e segurou a sacola do presente e de longe eu a ouvi dizendo: Papai foi ótima a ideia de termos comprado figurinhas depois do dentista, eu adorei! Feliz dia dos pais! E lhe entregou o par de sapatos que eu havia comprado. De batom vermelho e borrado deu-lhe o beijo amado e no modo secreto e silencioso dos dois disseram em pensamento: te amo. E, obrigada.

15 maio, 2014

Nascimento de Henrique.

Falar do nascimento do Henrique é falar sobre a fé nos mistérios da vida. Em sua magia, no poder que as coisas tem quando tem que ser, no poder que nossos desejos e pensamentos tem quando jogados ao universo.

Falar do nascimento do Henrique é falar sobre assumir coisas. Tomar decisões, nadar contra a maré, tomar para si o que é seu e levar até o fim a ideia de que nem sempre o que a maioria das pessoas faz é a melhor opção para você e nem sempre o caminho trilhado pela maioria é o caminho revelador, poderoso e transformador da vida.

Henrique nasceu em casa, no seu quarto, no dia 18 de Abril de 2014, às 23h15. Um parto domiciliar planejado, respaldado por uma excelente enfermeira obstetra e apoiado por um renomado médico obstetra que conduziu meu pré-natal.

Parir em casa é assumir para si todos os riscos da vida, é agarrar com punho e alma a verdade de que o parto é um evento fisiológico e não patológico, é descobrir que, em uma gravidez de baixo risco como era a minha, ir para o hospital implica infinitamente mais riscos para mim e para o meu filho a tê-lo no aconchego do meu lar.É entender que a vida é feita de assumir que ela é frágil e intensa e que sempre haverá algo maior que nós a determinar sua fragilidade..

Henrique é meu segundo filho, a primeira, Manuela, nasceu em um parto natural hospitalar, sem analgesia, episiotomia, sem muita intervenção. Manuela saiu de mim e veio direto para o meu seio, onde ficou por duas horas, tendo o cordão cortado após parar de pulsar e não teve seus olhos violentados pelo colírio de nitrato de prata. Manuela foi meu primeiro parto de mim mesma e contra o sistema. Foi o primeiro sintoma da mulher que eu era e gostaria de ser. Manuela me revelou o quão poderosa eu era e o quanto todo o sistema do parto no meu país estava errado, como era apenas mais uma faceta de uma sociedade machista que subjuga as mulheres. Parir Manuela me revelou como fêmea, poderosa, leoa.

Então veio meu doce Henrique. Uma gravidez tumultuada, dois empregos, uma filha pequena amedrontada sobre o que seria ter um irmão, uma gripe violenta, um tombo, um carro descendo a ladeira e eu literalmente segurando com as mãos, um strepto positivo no final. Muita leitura, conversa, muita reação espantada de pessoas que diziam: vai parir seu filho em casa??? Coloca uma ambulância na porta.
Não as julgo, quando não temos informação o medo é nosso guia, vivemos em uma sociedade alarmista, que trabalha a partir da doença ao invés da saúde, temos um cenário onde o parto se tornou um evento do médico, cirúrgico, quase uma enfermidade, um perigo. Mas não é. E quando descobrimos que tudo isso é uma grande mentira nos deparamos com nós mesmas. Mulheres gigantes e poderosas.

No parto de Manuela me entreguei em um barco a deriva, não sabia onde ia chegar, mas me entreguei. As ondas me levaram e eu simplesmente me deixei levar confiante. Quando foi a vez de Henrique eu tomei o remo, as rédeas e trabalhei junto com meu corpo. Às 18h30 do dia 18 foi quando as contrações ficaram regulares, Manuela foi para cama com o pai. A essa hora, se anjos existem estavam todos aqui em casa. Neste dia minha filha não me pediu para dormir com ela, foi só com o pai e eu fiquei só. As contrações eram muito fortes, o que me fizeram crer que seria muito rápido. A cada contração eu focava minha mente para dentro de mim e impulsionava com meu pensamento e respiração meu útero para que se abrisse. Às 21h minha doula chegou. Às 21h50 as enfermeiras. Fiquei a maior parte do tempo em meu quarto. Eu, Henrique e meu corpo trabalhando juntos. Eu sabia exatamente em que estágio do trabalho de parto estava. Disse ao meu marido, "ele vai nascer daqui a pouco", para espanto do Leo que estava esperando as 12 horas do trabalho de parto da Manu. Mas eu sabia, sabia de tudo, e trabalhava com tranquilidade para que acontecesse.
A banheira foi cheia no quarto de Henrique e eu fui para lá. Surpreendida por uma luz azul, que minha doula colocou no quarto, fui arrebata pela água morna. À minha frente, sentada e sorrindo a enfermeira Odete. No teto as fadas do quarto do meu filho, nas paredes as nuvens que fiz. Então eu disse: Filho seu quarto está lindo! Disse isso com toda minha alma. Então veio a contração final. Me virei de quatro e Henrique nasceu. Sem que ninguém o tirasse de mim. Ao som da minha respiração e sob a força do meu corpo ele lentamente saiu de dentro de mim e foi amparado, na água, por Odete, que me entregou imediatamente meu lindo filho. Duas circulares de cordão, 3k765, 53 cm. Olhos puxados, amendoados. Eu o pari. E na mesma hora, em outra cidade, onde estava sua bisavó uma linda borboleta invadiu a sala.
Nasceu Henrique.
Manuela dormia, assim como eu e ela desejávamos. E ao acordar pela manhã encontrou seu irmão na cama, trazido pelos anjos. Para ela ele atravessou sim um portal dourado e desceu pelo arco-íris.
Pouco depois de parir Henrique eu pari a placenta, a toquei, agradeci, tomei um ponto em uma laceração que não senti, tomei sopa trazida por minha mãe e dormimos todos aqui. Eu, Leo, Manuela e Henrique, família e parte um dos outros que somos.
Não acredite que você não é capaz. Sempre somos. Nossa vida está em nossas mãos. E aí então os anjos sempre dizem: amém.

21 janeiro, 2014

Napoleão se foi. Mas fica em nós.

Vô querido. "Napo com Leão". De você ficam muitas coisas. Suas sandálias de couro, as visitas ao mercado Central de BH, as ruas de Petrópolis e o momento de nos reunirmos ao fim de um encontro para um retrato. Sempre vou me lembrar de você com sua barba enorme, sua distração maluca e do som de uma gaita que ecoava por um extenso salão de um antigo casino em Petrópolis.
Lembrarei-me de sua fissura por doces, de seus gorros e adereços trazidos das viagens pelo mundo, da sua cabeça aberta e o papo tranquilo para falar das bagunças da vida, de drogas e de ideais comunistas. Da sua bolsa de lado, dos seus relógios antigos, a coleção de filmes raros, os retratos de Che e Fidel e do cuco que saía para fora da casinha e tanto me encantava quando criança.
O senhor não foi um avô comum, foi um avô a frente de tudo. Não ia à missa aos domingos, mas escrevia livros sobre política, carregava ideais de uma revolução. Foi à Cuba e ao mundo todo, desaparecia e depois ressurgia cheio de saudades. Se parecia com meu pai, com meu irmão, gostava de piadas e assobiava baixinho ao fazer palavras cruzadas.
Você não foi um avô comum. E foi meu último avô a deixar esse plano. Como lhe disse no hospital, repito aqui:
Obrigada.
Por fazer parte de algo que sou, do que meus filhos serão. Por me fazer pensar além do ordinário, gostar também de filmes raros e de um bom retrato. Fará falta, claro. Mas que seja azul e lindo onde estás, repleto de amor, memórias, fotografias e uma bela gaita dourada.
Descanse Vô, nós continuamos pelo senhor.