16 fevereiro, 2023

Pinturas

Meus trabalhos em aquarela, acrílica e óleo.

26 maio, 2016

Sobre a menina violentada, sobre meus filhos, sobre o amor.

Filha e filho Hoje é um dia estranho. Recebi notícia triste, de uma garota de 17 anos que teve seu corpo violado, dilacerado, exposto, massacrado. Passei o dia com um nó na garganta, refletindo sobre estatísticas, dores e desafios de estar nesse mundo, enquanto vocês corriam pela praça em busca de cavalos e pombos. Ao som das declarações de amores proferidas e trocadas por vocês tentei me conectar com a doçura e esperança de renovação da vida; orei ao meu modo pela garota. Olhei para vocês. Um homem e uma mulher. Eis o que trouxe para o mundo e sei que a transformação que quero ver no mundo passa muito pelas pequenas revoluções que posso provocar em vocês. Então fiz e faço desejos; para a Manu desejo braços fortes, punhos firmes e a certeza de que ela pertence unicamente a si, desejo que você minha filha, se perca em devaneios românticos, mas nunca de seu corpo, faça dele o que bem entender, com a cautela, cuidado e amor que esse templo sagrado merece. Não deixe que te façam menor, porque você é gigante, não deixe que lhe digam que é frágil pois é dotada de enorme fortaleza e ande sempre ao lado dos que lhe inspiram beleza, doçura e respeito. Para Henrique desejo um pote de mel, uma doçura suave, ternura e compaixão, que você, filho meu, conserve esse jeito manso com que pega sua irmã pela mão e ao olhar em seus olhos lhe confessa amor eterno. Que você meu filho chore sempre lágrimas sinceras, use as cores e cortes de cabelo que gosta e peça sempre licença para tocar e amar o outro. Tenho fé no mundo, apesar de tudo, apesar de ter hoje voltado em minha adolescência, em minha infância, no primeiro beijo seguido de mãos rápidas e desrespeitosas, dos homens que atropelaram meus sonhos de amor perfeito com sua brutalidade e egoísmo, das cantadas na rua, dos assédios nos banheiros e até em recantos familiares. Fui até a periferia, fui até a garota e me abstive de tocar em sua tragédia com imagens pensadas, eu não consigo chegar lá, fui até sua mãe e às mães de tantas negras de periferia que são mortas. Viajei pelas publicidades, pelos corpos expostos como pedaços de carne, pelos dizeres "essa é para casar" ou "com minha filha não", pela ilegalidade do aborto e suas tantas mortes causadas, pela luta por parir, pela violência diária nos olhares, nas palavras, nos silêncios. Mas depois voltei para vocês meus filhos e vocês corriam pela praça, então lhes enviei esses desejos. Para Manuela firmeza, para o Henrique doçura. E para todos nós, mais amor.

20 dezembro, 2015

Sobre Manuela, um dos presentes que ganhei nessa vida

A menina sentia tudo com todo o corpo e se estremecia da planta dos pés até os seus cabelos. O mundo as vezes era muito para ela, e o grito nem sempre uma solução, mas o único caminho escolhido e possível. Seus cabelos emaranhados mostravam toda sua poesia do sentir e com a palma das mãos apalpava a lama, espremia a terra e catava flores, guardando-as para presentear alguém. Para a mãe pequenos galhos secos, pedrinhas, pedriscos brancos que chamava cristais. Com os olhos amendoados e brilhantes olhava fundo em nossa alma e nos revelava um "amor maior que o universo". Nem sempre os trajes eram a opção mais confortável, embora adorasse saias que rodassem e dessem movimento ao seu constante impulso de rodar, sapatos não eram necessários, apertavam, os pés queriam sentir o chão, se sujar de mundo. E docemente ela nos revelava feliz e intensa, todos os dias. Apenas cinco anos na Terra e já apreendia tanto dos pensares adultos, que lhe provocavam questões, quem é Deus, o que é religião, o que é adoecer. E guardava suas respostas para si. Rapidamente seu astuto pensar já fazia as ligações terrenas com aquilo que ela trouxe consigo de mistério. E no fim se punha novamente a dançar.

22 fevereiro, 2015

A minha carta para Henrique em seu Batismo.

Henrique chegou em um quarto azul. E azul revelaram-se seus olhos. E azul fez-se nossos dias. Henrique chegou e renovou a fé. Simplesmente porque era vida. Porque nos mostra a passagem do tempo e dos dias, com sua chegada e com suas descobertas. Henrique nos mostrou o amor de irmão, ao abrir a boca e encher de beijos sua irmã Manuela, que tão logo lhe retribui o afeto com longas risadas e profundos abraços. Henrique, como todo ser que chega, representa a finitude e o infinito. Me mostra, como mãe e como mulher, que irei envelhecer e morrer, mas que, também, outros seres irão seguir chegando. Com sua presença na Terra mais uma vez reafirmei que uma parte de mim será agora eterna. Henrique recebeu então o nome de seu bisavô, Henry. Nosso Henrique nasceu em casa. Em seu quarto. Na água. E para que nacesse neste lugar foi preciso que entendessemos e confiássemos no poder humano de ser, estar e realizar coisas por sua natureza. Controlamos até certo ponto e depois é só mistério. Então, ele nasceu rápido, num parto silencioso. De olhos fechados chegou na água e de lá foi para os meus braços, o de sua mãe, onde abriu os olhos e chorou o choro da chegada. Então hoje é dia de celebrar, mais uma vez, a renovação da vida; de celebrar o ciclo eterno da chegada, através da presença de nosso amado Henrique. Que você, meu filho, saiba no seu intímo que somos todos um só. E todos significa qualquer força vital deste planeta e do enorme universo. O seu Deus será sempre o que sussurra mais intimamente no interior do seu ser e ele falará mais alto sempre que você conseguir entender sua conexão com todas as coisas ao seu redor e com o que pulsa vibrante e incessante dentro da sua alma. Parece complexo mas se resume apenas em estar aberto para a vida, e em silêncio consigo. Siga seu caminho com saúde e distribua amor e compreensão pelo mundo. Que toda luz deste mundo te guie, e que uma chuva doce lhe faça florescer e crescer a cada nova primavera. Nunca deixe de acreditar. A vida é sim um belo milagre. Muito obrigada a cada um que aqui hoje está, partes deste pequeno ser. Que todos os bons pensamentos sejam poderosas vibrações para o meu, o nosso, o amado Henrique Dobbin Vieira da Cunha.

07 dezembro, 2014

Tempo

Outro dia minha filha foi sair do meu quarto e esticou-se na pontas dos pés, e eu pensei: que bom que ela ainda não alcança a maçaneta. O tempo me devora. É maravilhoso ver meus filhos crescerem, é maravilhoso envelhecer. Mas o tempo nos engole. Gostaria de ser mais do que sou, porque minha mente me dá rasteiras. Eterno. Como gostaria que certas coisas fossem eternas. O jeito como Manuela aperta os olhos e move sua boca em silêncio para me segredar doçuras, que eu nunca entendo. A forma como ela recria todas as coisas, pano é batom, batom é chocolate, vassoura é espada, linha é macarrão, agulha é colher. Queria que minha mente se lembrasse para sempre do seu cheiro e do seu modo maduro de refletir sobre a vida, sobre si, a forma como olha firme nos meus olhos e me aconselha a fazer a coisa certa. Gostaria que fosse eterno para mim os afagos dela e do irmão todas as manhãs, quando se abraçam e rolam na minha cama e Henrique, com a boca aberta, beija de modo intenso e babado todo o corpo de sua irmã. Gostaria de nunca esquecer-me do olhar de Henrique, azul, profundo, sabido e dos sons que emite: mamã...boaaaaa...Queria, como Manoel, amarrar o tempo no poste, mas depois voltar para soltá-lo. Soltá-lo doce e lentamente vendo se afastar de mim devagar, deixando um rastro cheiroso, para que, através do olfato, eu sempre me lembre. De Leo com Manuela aos ombros e Henrique aos braços. Da pequena pulando de todos os móveis da casa, do pequeno se arrastando pela casa, agarrando meu seio, gritando de alegria por todas as coisas. Devorando o mundo com todos os sentidos e a mais profunda alegria da descoberta. A sutileza com que ele esfrega um dedinho no outro e observa o movimento das mãos. Um cheiro suave como rastro, que me traga de volta o que vivi, de modo que minha mente não trapaceie. Outra noite Manuela foi sair do meu quarto e se pôs na ponta dos pés para abrir a porta e eu pensei: que bom. Ela ainda não alcança.

09 agosto, 2014

O pai Leo

Ela corre em sua direção de um jeito único e quase secreto, reservado aos dois, entrelaça suas mãos em volta de seu pescoço. E com olhar aguçado e animado vai até a janela dar boa noite aos lixeiros. Minha filha e meu marido possuem um mundo só deles. Permeado de bancas de jornais, histórias de dragões, venenos, quadrinhos, bichinhos e, sim, lixeiros, que docemente gritam: tchau neném. Não me esqueço a noite que antecedia a véspera de Natal, quando os dois sumiram e ao olhar pela janela os vi lá na esquina da minha rua, Manuela segurava animadíssima uma nota de 50 reais para a caixinha de Natal dos lixeiros. Era parte do mundo deles, é parte do segredo dos dois. Lembro-me que quando ela nasceu só me lembrei de beijá-la e que, seu pai, lembrou-se do carinho que Leboyer disse em seu livro, de, em ondas, massagear as costas do recém nascido. Foi com ele que ela foi a primeira vez ao dentista e depois passaram em uma banca de revistas (claro) para comprarem figurinhas que ela adora, é com ele que ela assiste a filmes clássicos como Luzes da Cidade, do Chaplin e Cantando na Chuva. Ele é o pai doce, de fala mansa, ele é o pai amigo, não a autoridade. Certo dia lhe disse: quando Manuela estiver fazendo pirraça segure seus braços, olhe nos seus olhos e diga bravo: pare! E ele, pensativo, concluiu e me disse: não sei ser um pai assim. Ele sabe ser o pai que sabe ser. O homem que é. Um homem generoso. Em seu mundo secreto com seus filhos guarda pequenas canções, sutis doçuras cotidianas. É ele quem muitas vezes acalma uma dor de barriga do caçula, Henrique. É com ele que o pequenino vai ao trocador todas as manhãs. Ficam lá por um tempo quase em silêncio e Henrique sai pronto, seco e de nariz desentupido. Ele é o responsável por me entregar Manuela com roupa descombinada, de estômago vazio, sono e risada faceira. Ele é o responsável por tantas vezes dizer: esqueci. E me mostrar que sim, está tudo bem mesmo assim. Meu companheiro e grande amigo é o parceiro das fantasias da minha filha e da paz do meu bebê. Esse pai, é o papai Leo, magrinho e tímido. Doce e querido. Um papai tão amado que sua filha quis antecipar o dia dos pais para Sábado. Chegou ao meu quarto e fechando a porta pediu-me que lhe arrumasse, rápido, antes que ele a visse. Colocou tiara de flor e vestido de festa, rasbicou cartão e segurou a sacola do presente e de longe eu a ouvi dizendo: Papai foi ótima a ideia de termos comprado figurinhas depois do dentista, eu adorei! Feliz dia dos pais! E lhe entregou o par de sapatos que eu havia comprado. De batom vermelho e borrado deu-lhe o beijo amado e no modo secreto e silencioso dos dois disseram em pensamento: te amo. E, obrigada.

15 maio, 2014

Nascimento de Henrique.

Falar do nascimento do Henrique é falar sobre a fé nos mistérios da vida. Em sua magia, no poder que as coisas tem quando tem que ser, no poder que nossos desejos e pensamentos tem quando jogados ao universo.

Falar do nascimento do Henrique é falar sobre assumir coisas. Tomar decisões, nadar contra a maré, tomar para si o que é seu e levar até o fim a ideia de que nem sempre o que a maioria das pessoas faz é a melhor opção para você e nem sempre o caminho trilhado pela maioria é o caminho revelador, poderoso e transformador da vida.

Henrique nasceu em casa, no seu quarto, no dia 18 de Abril de 2014, às 23h15. Um parto domiciliar planejado, respaldado por uma excelente enfermeira obstetra e apoiado por um renomado médico obstetra que conduziu meu pré-natal.

Parir em casa é assumir para si todos os riscos da vida, é agarrar com punho e alma a verdade de que o parto é um evento fisiológico e não patológico, é descobrir que, em uma gravidez de baixo risco como era a minha, ir para o hospital implica infinitamente mais riscos para mim e para o meu filho a tê-lo no aconchego do meu lar.É entender que a vida é feita de assumir que ela é frágil e intensa e que sempre haverá algo maior que nós a determinar sua fragilidade..

Henrique é meu segundo filho, a primeira, Manuela, nasceu em um parto natural hospitalar, sem analgesia, episiotomia, sem muita intervenção. Manuela saiu de mim e veio direto para o meu seio, onde ficou por duas horas, tendo o cordão cortado após parar de pulsar e não teve seus olhos violentados pelo colírio de nitrato de prata. Manuela foi meu primeiro parto de mim mesma e contra o sistema. Foi o primeiro sintoma da mulher que eu era e gostaria de ser. Manuela me revelou o quão poderosa eu era e o quanto todo o sistema do parto no meu país estava errado, como era apenas mais uma faceta de uma sociedade machista que subjuga as mulheres. Parir Manuela me revelou como fêmea, poderosa, leoa.

Então veio meu doce Henrique. Uma gravidez tumultuada, dois empregos, uma filha pequena amedrontada sobre o que seria ter um irmão, uma gripe violenta, um tombo, um carro descendo a ladeira e eu literalmente segurando com as mãos, um strepto positivo no final. Muita leitura, conversa, muita reação espantada de pessoas que diziam: vai parir seu filho em casa??? Coloca uma ambulância na porta.
Não as julgo, quando não temos informação o medo é nosso guia, vivemos em uma sociedade alarmista, que trabalha a partir da doença ao invés da saúde, temos um cenário onde o parto se tornou um evento do médico, cirúrgico, quase uma enfermidade, um perigo. Mas não é. E quando descobrimos que tudo isso é uma grande mentira nos deparamos com nós mesmas. Mulheres gigantes e poderosas.

No parto de Manuela me entreguei em um barco a deriva, não sabia onde ia chegar, mas me entreguei. As ondas me levaram e eu simplesmente me deixei levar confiante. Quando foi a vez de Henrique eu tomei o remo, as rédeas e trabalhei junto com meu corpo. Às 18h30 do dia 18 foi quando as contrações ficaram regulares, Manuela foi para cama com o pai. A essa hora, se anjos existem estavam todos aqui em casa. Neste dia minha filha não me pediu para dormir com ela, foi só com o pai e eu fiquei só. As contrações eram muito fortes, o que me fizeram crer que seria muito rápido. A cada contração eu focava minha mente para dentro de mim e impulsionava com meu pensamento e respiração meu útero para que se abrisse. Às 21h minha doula chegou. Às 21h50 as enfermeiras. Fiquei a maior parte do tempo em meu quarto. Eu, Henrique e meu corpo trabalhando juntos. Eu sabia exatamente em que estágio do trabalho de parto estava. Disse ao meu marido, "ele vai nascer daqui a pouco", para espanto do Leo que estava esperando as 12 horas do trabalho de parto da Manu. Mas eu sabia, sabia de tudo, e trabalhava com tranquilidade para que acontecesse.
A banheira foi cheia no quarto de Henrique e eu fui para lá. Surpreendida por uma luz azul, que minha doula colocou no quarto, fui arrebata pela água morna. À minha frente, sentada e sorrindo a enfermeira Odete. No teto as fadas do quarto do meu filho, nas paredes as nuvens que fiz. Então eu disse: Filho seu quarto está lindo! Disse isso com toda minha alma. Então veio a contração final. Me virei de quatro e Henrique nasceu. Sem que ninguém o tirasse de mim. Ao som da minha respiração e sob a força do meu corpo ele lentamente saiu de dentro de mim e foi amparado, na água, por Odete, que me entregou imediatamente meu lindo filho. Duas circulares de cordão, 3k765, 53 cm. Olhos puxados, amendoados. Eu o pari. E na mesma hora, em outra cidade, onde estava sua bisavó uma linda borboleta invadiu a sala.
Nasceu Henrique.
Manuela dormia, assim como eu e ela desejávamos. E ao acordar pela manhã encontrou seu irmão na cama, trazido pelos anjos. Para ela ele atravessou sim um portal dourado e desceu pelo arco-íris.
Pouco depois de parir Henrique eu pari a placenta, a toquei, agradeci, tomei um ponto em uma laceração que não senti, tomei sopa trazida por minha mãe e dormimos todos aqui. Eu, Leo, Manuela e Henrique, família e parte um dos outros que somos.
Não acredite que você não é capaz. Sempre somos. Nossa vida está em nossas mãos. E aí então os anjos sempre dizem: amém.

21 janeiro, 2014

Napoleão se foi. Mas fica em nós.

Vô querido. "Napo com Leão". De você ficam muitas coisas. Suas sandálias de couro, as visitas ao mercado Central de BH, as ruas de Petrópolis e o momento de nos reunirmos ao fim de um encontro para um retrato. Sempre vou me lembrar de você com sua barba enorme, sua distração maluca e do som de uma gaita que ecoava por um extenso salão de um antigo casino em Petrópolis.
Lembrarei-me de sua fissura por doces, de seus gorros e adereços trazidos das viagens pelo mundo, da sua cabeça aberta e o papo tranquilo para falar das bagunças da vida, de drogas e de ideais comunistas. Da sua bolsa de lado, dos seus relógios antigos, a coleção de filmes raros, os retratos de Che e Fidel e do cuco que saía para fora da casinha e tanto me encantava quando criança.
O senhor não foi um avô comum, foi um avô a frente de tudo. Não ia à missa aos domingos, mas escrevia livros sobre política, carregava ideais de uma revolução. Foi à Cuba e ao mundo todo, desaparecia e depois ressurgia cheio de saudades. Se parecia com meu pai, com meu irmão, gostava de piadas e assobiava baixinho ao fazer palavras cruzadas.
Você não foi um avô comum. E foi meu último avô a deixar esse plano. Como lhe disse no hospital, repito aqui:
Obrigada.
Por fazer parte de algo que sou, do que meus filhos serão. Por me fazer pensar além do ordinário, gostar também de filmes raros e de um bom retrato. Fará falta, claro. Mas que seja azul e lindo onde estás, repleto de amor, memórias, fotografias e uma bela gaita dourada.
Descanse Vô, nós continuamos pelo senhor.

21 julho, 2013

Um desmame de luz. O desmame em que nada fiz. O desmame que foi simplesmente o desmame.

Como caminhamos até aqui. O primeiro contato de Manuela com o mundo foi com a boca ao meu seio. Saiu de dentro de mim e veio diretamente para os meus braços, nos deitamos e, com o cordão ainda pulsando, lambeu, cheirou e pegou meu seio. Intercalava seu choro de recém- nascida com abocanhadas ao meu seio, até que o choro mesmo acabou e só restou o peito, por mais de uma hora.
E esse primeiro contato com o mundo se tornou rapidamente seu maior referencial na relação comigo e com os outros e com a vida. Era no meu seio que os tombos e os sustos se curavam. Era no meu seio que o sono chegava, e do sono acordava. Foi batizada no meu seio, cochilando, não a quis acordar tão pouco tirá-la do seu mamá. Fez de chupeta como diriam alguns, fez de alimento, fez de conexão com o desconhecido.
Sempre com a pega perfeita não permitiu que eu tivesse as questões que atormentam algumas mães, como rachaduras no bico do seio. Mas tivemos sim pedras no caminho. Sempre magrinha ganhou quase nada de peso a partir do terceiro mês, aí tinham aqueles que sempre questionam: não seria seu leite? Mas meu coração nunca me enganou e aquele nenem magrelo, mamão, sorridente e acordado não poderia estar passando fome, nem estar doente. Tive a sorte de uma pediatra contra fórmulas, suplementos e vitaminas caso o bebê esteja clinicamente bem, então seguimos até seis meses com aleitamento exclusivo. Eu, ela e nosso seio. Até comercial fizemos, em que ela, linda, me olha profundamente e abocanha seu alimento e seu referencial de vida, amor e mundo.
Ouve-se muita coisa quando se é mãe. Imagina eu? Com uma menina tão esperta, tagarela e cheia de energia, que, aos dois anos, puxava minha blusa e agarrava meu seio sem pudores. Eu nunca tive nem disse a ela que deveríamos ter pudor com isso. Seguimos nosso caminho. Doenças? Duas viroses, dessas um resfriado forte quando entrou na escola e uma inócua, eruptiva. Febres? Duas. Amor? Muito.
Dias de sofrimento e cansaço? Vários. Muitas vezes queria que alguém viesse sim substituir meu seio. Quantas noites depois de mamar todo o leite não começou a enrolar ali, sem dormir e eu exausta gritei de desespero. Mas nunca foi o suficiente para tirar-lhe. Meu coração dizia que eu não devia. E eu tinha sim, muitos momentos de prazer quando Manuela se aninhava e aquele pouco de leite que restava descia. E ela enorme com os pés para fora do meu colo mamava com prazer e silêncio. Era uma reconexão nossa com o mistério que nos fez mãe e filha.
Até o dia 14 de Julho de 2013. Quando minha filha, aos dois anos e dez meses, espontaneamente me disse que havia crescido. E que aquele seria o último dia do mamá. Disse que quando isso acontece há fogos e sacudiu suas mãos no ar. Deu tchau, verbalmente: tchau, mamá. E mamou. Largou. Voltou. Repetiu: mamãe é a última vez então vou mamar mais um pouco. Ao que lhe disse: filha se é a última vez você deve mamar muito.
E então começou a se dividir entre o hábito, entre o fato de ser essa, até então, sua referência mais forte e única na relação comigo e o fato de que ela havia sim entendido que crescera. E não fui eu quem lhe contou. Seu eu tivesse lhe contado ela não saberia, mas foi ela quem soube e me contou.
O hábito foi diluindo, diluindo. Eu disse: filha, agora nós vamos entender a nova forma. E estamos entendendo. Acaba de dormir seu cochilo da tarde. Se deitou, eu deitei junto, lhe fiz cosquinhas com a ponta dos dedos, cantarolei uma linda música e ela dormiu. Foi assim noite passada também. O mundo cresceu para ela. E o que é melhor, cresceu junto com ela.
Te amo Manuela, meu seio está guardado mas minha alma lhe pertence para sempre filha. Obrigada. E obrigada coração meu por me sussurrar tantas certezas bonitas.
Nosso comercial, seu olhar sempre foi o mesmo:
http://youtu.be/EF9pOch3lNg

19 maio, 2013

O pequeno botão de rosa



Era uma vez uma rosa amarela. Ela brotou num dia de sol sob a força da natureza e se mostrou vigorosa, esplendorosa. Ainda era botão, levemente fechado, que, ao soprar da brisa, se abria em pequenos pedaços e lentamente se fechava novamente, agasalhando-se em sono leve.
Sob a luz do sol se alimentava,se nutria e crescia.
Até que ao fim do décimo dia, o botão sentiu uma rajada de vento mais forte que habitual. Estremeceu-se em seus pequenos e frágeis espinhos e voo levemente, desprendendo-se da mãe roseira e caindo nas águas do rio.
A roseira se balançou com o movimento da filha que voava, e, ao som do vento forte e agudo que soprava, esticou seus galhos na direção do rio, que, ao soprar do vento rapidamente se agitou e carregou a pequena rosa amarela.

O vento soprava e o pequeno botão de rosa descia, e a roseira...a roseira chorava. E por ser roseira não era choro de gente, era choro de flor despedaçada. Ritimava com o sibiliar do vento o chacoalhar de suas folhas, galhos, e outras pequenas rosas que carregava em si.

A pequena rosa amarela absorveu-se pela água, encharcou-se do rio e desceu até sua margem.Boiou até o canto e em um pequeno pedaço de terra aterrou, ensopada, nem tão amarela, mas ainda botão.

Foi quando a roseira que gritava pelo chacoalhar de suas folhas silenciou-se.
Esperou o sol.
Rendeu-se à brisa e ao tempo.
E aos poucos algumas de suas folhas foram caindo no rio, descendo suas águas até chegarem à mesma margem em que descansava o tão pequeno botão de rosa amarela.

Os pedaços da mãe roseira boiaram por cima do pequeno botão, cobrindo-lhe de amor. E lhe secaram a água. Depois integraram-se a terra. Que se abriu em grande buraco. Foi então que a ponta do botão ao chão mergulhou.

E se alimentando da terra brotou novamente. Se abriu e cresceu. Frondosa e aberta para o sol.  

06 fevereiro, 2013

Uma breve história sobre o nascimento de Aurora

Aurora tinha sentido de luz. Tocava nas manhãs. Chegou com calma, recebeu colo de quem, chamada de Helena, se apresentava irmã.
Aurora era sim a luz da manhã, uma luz rara e única, como são os seres recém chegados. Então um fio de luz e um fio de vida rapidamente se revelou. Uma infecção. Um susto. Um temor.
O sussurro e a explicação do que acontecia para Aurora se cantou. Seus dedos pequenos esticados e duvidosos foram amparados com amor.
A mãe que de ser mãe já se sabia, chorou choro de dor. Dor. Choro nunca antes ouvido, ruído que não se sabia, pavor que não se somava a letra, que não tinha sentido.
Aurora em silêncio também chorou, mas em paz devia estar. Ela acabara de chegar, ainda conversava com anjos que boiavam no teto, escondidos por detrás de lampadas hospitalares. Seu corpo chorava, mas sua alma sem dúvida era cuidada e em um silêncio misterioso boas palavras com esses anjinhos trocava.
Uma vez duvidaram da mãe, essa ciência que tanto duvida do que é de gente e de homem. E a mãe em silêncio dizia para si: dentro de mim carrego muitas respostas. Ela, que já descobrira e entendera o choro desconhecido, soube então ser leoa e sabiá, rugir e ao mesmo tempo cantar. E suavemente fingindo não saber que seu coração sabia mais que a ciência da Terra, propôs seu peito como alento.
Com boca devoradora de quem busca sua parte, a parte de si, Aurora mamou. O leite descia e as fartava, a ambas. Os médicos tiveram então que descansar os livros. Apenas ouvir com os olhos.
Então Aurora foi curada. E os tons azuis e rosados, amarelos profundos e belos de um renascer reluziram na palavra ALTA.
Aurora então nasceu.

09 janeiro, 2013

Carta para o Professor

Eu bem sei que aí não tem computadores, internet. Como sei que mesmo quando tudo era terreno para você não lhe era costumeiro checar emails e frequentar blogs. Mas minha alma hoje borbulhou dentro de mim e eu precisava lhe escrever. Escrevo para mim mesma, para os que me leem, mas o desabafo conforta e a doce ilusão de que com o senhor converso agora acalma a saudade, abranda as lágrimas.

Eu e Paula conversávamos. Ela fará Pedagogia, na Uni Rio, segue grávida de Francisco. O Chiquinho que você chamava na minha barriga veio na dela. Eu estou cercada de livros. Esse ano começo a lecionar português a crianças de onze anos.

Sim. Duas de nós. Educadoras. Eu me sinto tão entusiasmada que, ao ler os livros, ao deparar me com pensamentos e orientações para a formação de leitores, escritores, cidadãos críticos, pessoas de opinião, transformadores sociais, preciso pausar a leitura para conter o entusiasmo. Entusiasmo desse fazer tão belo, artesanal e profundo. E disse a Paula que queria poder lhe contar e dividir com você minha alegria, expectativa e desafio. E ela disse que você sabia. E que era vivo em nós.

Lembrei me então do dia em que me contou que o dia mais feliz da sua vida foi quando entrou na sua escola, escola que você fundou com suor e amor. E que ao olhar para o pátio sentiu uma alegria tranquila, dessas que se dão pela certeza de estar no lugar certo.

Das suas conversas com Manuel Bandeira, da sua amizade com Manoel de Barros e Helio Oiticica. Da alfabetização para adultos humildes que você realizou até os mais de noventa anos de idade. Do dia que, sentado à cadeira de sua casa, me confessou: ensinar a ler e escrever é só o começo, o que faço nessas aulas é dar noções de cidadania a esses trabalhadores, que tem as mãos calejadas, porque quando crianças ganharam uma enxada ao invés de lápis e caderno.

O que seria então ser um professor? O senhor tinha a alma de um. E deixou "farelinhos" dessa estrela, que a vida se encarrega aos poucos de mostrar. Nunca imaginei que seria professora de português e no entanto me vejo como o senhor, orientadora e parceira de seres humanos.

A Paula disse que você é vivo. Em mim. Nela. Na Manuela. Que basta olhar, e dá até para tocar.

Disse que agora vai abrir com ela uma escola. Posso ver os passos dela pisando no pátio, segurando Francisco pela mão, olhando ao redor e sentindo o seu cheiro, para que ali prossiga seu legado.

E eu morro de saudades. De sua voz rouca a me dizer; então vá ler Julietinha porque ensinar Português é coisa séria.
E eu morro de gratidão. Gratidão eterna, por ser sua neta vô.

04 dezembro, 2012

Lado de cá

O som era da vassoura. Ela varria e me dizia. Eu também desabafava. Meus olhos se enchiam, com a voz engasgada, com minha filha nos braços, lhe contava: ela levou um tiro no peito, dentro da própria casa. De graça. E a vassoura mudava a cadência ao ouvir me. Suas mãos calejadas então paravam. Seus olhos brilhantes e negros se espantavam e sua forte voz replicava com doçura: O reconheci pela televisão, quando preparava o almoço larguei meus afazeres, e fui ver se de fato era ele. O conheci pequeno. Era descalço. Drogado. Sentava-se abandonado por cima dos carros segurando uma arma. Eu ia para a igreja e dizia; olha só aquele menino ali, que fim terá?
E então secou as lágrimas. A vassoura voltou a varrer. Eu fui ninar minha filha. Nenhum perdão ocorreu. Só dor dos dois lados.

02 outubro, 2012

Que sei eu


Nomes. Um dia recortamos tudo. Demos nomes. Inventamos palavras. Reduzimos o sentido ao som da junção de letras. E então fazemos assim com tudo na vida. Profissão. Paixão. Realização. Nome. Nome. Nome. Damos tanto nomes para o que há fora de nós que o que não se chama também não se ouve.
Hoje quando me perguntam minha profissão tenho que pensar muito. Sou professora de teatro. Me formei em jornalismo. Escrevo sempre que dá, um coisa aqui e outra acolá, pouca ficção, muita reflexão, desabafo, as vezes poesia. Arranco algumas lágrimas dos leitores com palavras doces e sentidas, sei colocar no papel um bucado de coisa e sou uma contradição porque as vezes não acredito nas palavras mas me delicio com elas. Como não acreditar? Manoel de Barros é meu santo salvador e me salva por palavras. Deve ser porque ele não reduz sentimentos pelo som de letras. Ele os amplia, os mastiga, os colore. Então a palavra deixa de ser um recorte e vira arte. E se vira arte é extensão da vida, é transfiguração; mas me falta ousadia de me dar o nome de escritora. Sou mãe. Muito mãe. De amamentar até os dois anos, de mudar de cidade para dar uma casa mais confortável. De não cogitar, e preste bem atenção ao som dessa palavra COGITAR sacrificar nossa relação por coisas que, para mim, são menores. E olha que para ser menor que meu amor por ela não precisa lá ser algo tão pequeno. Sou dona de casa. Decoradora. Ultimamente me descobri habilidosa com as mãos. Faço borboletas de papel para varanda, prego com cola flores secas na parede e perco o sono elaborando presentes doces criativos para pessoas que amo. Sou cozinheira. Pesquiso sabores diferentes, compro orgânicos, integrais, não industrializados, não como carne, faço eu mesma o leite de coco. Que nome seria isso? Seria isso também uma profissão? Fiz 5 anos de escola de teatro, três no Brasil, dois em Londres. Me transformei. Saí da Inglaterra ouvindo: você precisa ser vista. Dei com a testa na porta, chorei. Só.Falei uma frase em um longa, uma peça pequena em Londres. Muito treino. Muito ensaio. Só. Seria atriz?
Que nome que a gente tem? E só de escrever quantos nomes carrego tirei o peso de me definir. Não tenho nome. Manuela me chama de mamãe juju, meu marido de amor, minha mãe de Julieta. Eu me chamo de não sei.  

30 julho, 2012

Para Henry

Os pés pisam no chão ainda frio. Eles desconhecem esse novo caminho. Com sua partida ficou a saudade do velho. Saudade do que era minha alma. Minha alma agora, mais uma vez, é outra. Não é mais aquela que existia à manhã de quarta feira. Voltar para minha vida antiga, a Belo Horizonte, não significa mais voltar ao que era. Ainda que eu cozinhe com os mesmos temperos, debaixo do mesmo teto, carregue Manuela para o mesmo parque pelo mesmo caminho. Converse ao telefone com minha mãe nos mesmos horários de sempre. Jamais será a vida anterior a quarta. O que nos faz é a vida e quem por ela cruza. Eu não me fiz católica. E conversávamos muito sobre Cristo. Eu lhe dizia que me doía aquela imagem de Cristo em pedaços de sangue, em sofrimento em uma cruz, mas o senhor dizia-me que aquilo representava renascimento. Renascimento. Tudo na vida é o modo que se vê. E que se sente.  Quantas vezes imaginei o dia em que partiria. 97 anos ora pois, pensei nisso muitas vezes. A gente tem essa mania estranha de pensar em algo que ainda não existe.  Eu sabia que você partiria na quarta, mas não disse a ninguém e quando quis dizer a mim, neguei solenemente. Suas cores vibram nas paredes da minha casa, sua última assinatura do seu último quadro, feito em parceria, ganhou beijo doce e espontâneo de sua bisneta. Eu beijei sua cama. Não pude colocar a mão em sua fronte fria como o fez seu guerreiro e amado filho Paulo. Mas eu lhe olhei. Olhei profundamente. E por ora via aquelas flores se mexerem como se respirasse aquele corpo que tanto viveu. Certa vez escrevi sobre uma cidade redonda onde sempre voltamos a onde começamos. Concordo. Mas os pés pisam diferente. E a alma carrega mais saudades. Novos sonhos. Por você carrego gratidão. Lembro me de quando cumpri o sonho de morar perto de ti, e até mingau lhe fiz. Era uma forma de eu lhe dizer muito obrigada. Obrigada por me ensinar que na cruz cheia de sangue há renascimento, que em um desaforo sincero reside um amor profundo e um desejo intenso de que o mundo seja um lugar melhor. De que viver 97 anos e querer partir e partir porque quer é privilégio de almas solenes. Antes mesmo de sua partida me lembrava todas as noites de sua voz rouca a contar me histórias pra dormir, quando faço o mesmo para minha filha. Não as mesmas. Mas histórias. E regadas de amor. E essa noite em um sono meio acordada falava comigo mesma a despedida e me despedia de cada parte do seu corpo. Sonambula dizia adeus aos seus pés, à suas mãos, dizia adeus a cada parte de ti, e acordei bem. Minha alma não é mais a mesma e como eu poderia lhe pedir: não não vá! Não havia como isso lhe pedir, que pra viver precisa se morrer. E junto ás estrelas se juntar. E não sei dizer o que se torna quando se vai. Mas o que fica de ti...esse fica comigo até eu partir.