04 dezembro, 2012

Lado de cá

O som era da vassoura. Ela varria e me dizia. Eu também desabafava. Meus olhos se enchiam, com a voz engasgada, com minha filha nos braços, lhe contava: ela levou um tiro no peito, dentro da própria casa. De graça. E a vassoura mudava a cadência ao ouvir me. Suas mãos calejadas então paravam. Seus olhos brilhantes e negros se espantavam e sua forte voz replicava com doçura: O reconheci pela televisão, quando preparava o almoço larguei meus afazeres, e fui ver se de fato era ele. O conheci pequeno. Era descalço. Drogado. Sentava-se abandonado por cima dos carros segurando uma arma. Eu ia para a igreja e dizia; olha só aquele menino ali, que fim terá?
E então secou as lágrimas. A vassoura voltou a varrer. Eu fui ninar minha filha. Nenhum perdão ocorreu. Só dor dos dois lados.

02 outubro, 2012

Que sei eu


Nomes. Um dia recortamos tudo. Demos nomes. Inventamos palavras. Reduzimos o sentido ao som da junção de letras. E então fazemos assim com tudo na vida. Profissão. Paixão. Realização. Nome. Nome. Nome. Damos tanto nomes para o que há fora de nós que o que não se chama também não se ouve.
Hoje quando me perguntam minha profissão tenho que pensar muito. Sou professora de teatro. Me formei em jornalismo. Escrevo sempre que dá, um coisa aqui e outra acolá, pouca ficção, muita reflexão, desabafo, as vezes poesia. Arranco algumas lágrimas dos leitores com palavras doces e sentidas, sei colocar no papel um bucado de coisa e sou uma contradição porque as vezes não acredito nas palavras mas me delicio com elas. Como não acreditar? Manoel de Barros é meu santo salvador e me salva por palavras. Deve ser porque ele não reduz sentimentos pelo som de letras. Ele os amplia, os mastiga, os colore. Então a palavra deixa de ser um recorte e vira arte. E se vira arte é extensão da vida, é transfiguração; mas me falta ousadia de me dar o nome de escritora. Sou mãe. Muito mãe. De amamentar até os dois anos, de mudar de cidade para dar uma casa mais confortável. De não cogitar, e preste bem atenção ao som dessa palavra COGITAR sacrificar nossa relação por coisas que, para mim, são menores. E olha que para ser menor que meu amor por ela não precisa lá ser algo tão pequeno. Sou dona de casa. Decoradora. Ultimamente me descobri habilidosa com as mãos. Faço borboletas de papel para varanda, prego com cola flores secas na parede e perco o sono elaborando presentes doces criativos para pessoas que amo. Sou cozinheira. Pesquiso sabores diferentes, compro orgânicos, integrais, não industrializados, não como carne, faço eu mesma o leite de coco. Que nome seria isso? Seria isso também uma profissão? Fiz 5 anos de escola de teatro, três no Brasil, dois em Londres. Me transformei. Saí da Inglaterra ouvindo: você precisa ser vista. Dei com a testa na porta, chorei. Só.Falei uma frase em um longa, uma peça pequena em Londres. Muito treino. Muito ensaio. Só. Seria atriz?
Que nome que a gente tem? E só de escrever quantos nomes carrego tirei o peso de me definir. Não tenho nome. Manuela me chama de mamãe juju, meu marido de amor, minha mãe de Julieta. Eu me chamo de não sei.  

30 julho, 2012

Para Henry

Os pés pisam no chão ainda frio. Eles desconhecem esse novo caminho. Com sua partida ficou a saudade do velho. Saudade do que era minha alma. Minha alma agora, mais uma vez, é outra. Não é mais aquela que existia à manhã de quarta feira. Voltar para minha vida antiga, a Belo Horizonte, não significa mais voltar ao que era. Ainda que eu cozinhe com os mesmos temperos, debaixo do mesmo teto, carregue Manuela para o mesmo parque pelo mesmo caminho. Converse ao telefone com minha mãe nos mesmos horários de sempre. Jamais será a vida anterior a quarta. O que nos faz é a vida e quem por ela cruza. Eu não me fiz católica. E conversávamos muito sobre Cristo. Eu lhe dizia que me doía aquela imagem de Cristo em pedaços de sangue, em sofrimento em uma cruz, mas o senhor dizia-me que aquilo representava renascimento. Renascimento. Tudo na vida é o modo que se vê. E que se sente.  Quantas vezes imaginei o dia em que partiria. 97 anos ora pois, pensei nisso muitas vezes. A gente tem essa mania estranha de pensar em algo que ainda não existe.  Eu sabia que você partiria na quarta, mas não disse a ninguém e quando quis dizer a mim, neguei solenemente. Suas cores vibram nas paredes da minha casa, sua última assinatura do seu último quadro, feito em parceria, ganhou beijo doce e espontâneo de sua bisneta. Eu beijei sua cama. Não pude colocar a mão em sua fronte fria como o fez seu guerreiro e amado filho Paulo. Mas eu lhe olhei. Olhei profundamente. E por ora via aquelas flores se mexerem como se respirasse aquele corpo que tanto viveu. Certa vez escrevi sobre uma cidade redonda onde sempre voltamos a onde começamos. Concordo. Mas os pés pisam diferente. E a alma carrega mais saudades. Novos sonhos. Por você carrego gratidão. Lembro me de quando cumpri o sonho de morar perto de ti, e até mingau lhe fiz. Era uma forma de eu lhe dizer muito obrigada. Obrigada por me ensinar que na cruz cheia de sangue há renascimento, que em um desaforo sincero reside um amor profundo e um desejo intenso de que o mundo seja um lugar melhor. De que viver 97 anos e querer partir e partir porque quer é privilégio de almas solenes. Antes mesmo de sua partida me lembrava todas as noites de sua voz rouca a contar me histórias pra dormir, quando faço o mesmo para minha filha. Não as mesmas. Mas histórias. E regadas de amor. E essa noite em um sono meio acordada falava comigo mesma a despedida e me despedia de cada parte do seu corpo. Sonambula dizia adeus aos seus pés, à suas mãos, dizia adeus a cada parte de ti, e acordei bem. Minha alma não é mais a mesma e como eu poderia lhe pedir: não não vá! Não havia como isso lhe pedir, que pra viver precisa se morrer. E junto ás estrelas se juntar. E não sei dizer o que se torna quando se vai. Mas o que fica de ti...esse fica comigo até eu partir.

03 julho, 2012

Efêmero

Você tirou suas fraldas. Assim, com um ano e 9 meses as arrancou e decretou seu fim. Para isso não fiz nenhum processo nem treinamento, nem tão pouco esperava. Me disseram que seria a partir dos dois. E como todas as belezas da vida acontecem sem data previamente marcada você decidiu que não as queria agora. Usa calcinhas, pouco as molha, já sabe fazer a forcinha pro xixi sair,  ainda não pede, mas tudo indica que em breve, muito em breve, o verbo e o desejo saltarão a boca. E foi doce e sútil. O peito ainda não solta. Agarra, coloca a boca e se distrai por ali. Eu fico exausta. Reclamo. Essa noite por duas horas seguidas sugou deitada por cima da minha barriga. Já elabora frases enormes, raciocínios incríveis, entendimentos completos e as vezes, porque não dizer, precoces. Precoces para regras gerais, mas não pra você. Você que esperou 41 semanas, dois dias e 12 horas de trabalho de parto pra nascer. Não para você que é respeitada no seu tempo. E tanto me ensina. A morte sempre ronda a vida. E nos passa de raspão. Uma mulher um dia se jogou bem perto de mim. Semana seguinte passamos 20 minutos antes em um local que foi palco de uma tragédia de trânsito. Hoje soubemos que o filho da sua médica tirou a própria vida. E você a viver a sua no seu tempo. E eu, entre olheiras e cansaço, vejo uma menina que quer muito meu seio, que dormiu a noite toda agarrada a mim. Então respiro. Te vejo enorme, perfeita e saudável. Deitada na minha cama com calcinha de algodão branco a choramingar meu peito. E lhe dou. E nos agarramos. E eu lhe toco. Sua pele branca, macia. Seus cabelos claros, seus cílios longos, sua boca perfeita e rosada. E agradeço a sua existência. E celebro o encontro das nossas almas que um dia decidiram se fazer carne para viverem juntas por essa passagem pela Terra. E eternizo esse momento. Porque a vida tem me revelado, ao acaso, a morte. E você me revela a vida. Me revela a mim. E me mostra o tempo. E sei que do mesmo modo que arrancou as fraldas um dia vai dizer adeus ao meu seio. Vai abrir a porta de casa e ganhar o mundo. Eu vou envelhecer. Você também. E essa tarde de hoje, você agarrada ao seio aos quase dois anos de idade, esse momento estará somente gravado na alma. Você meu amor não faz nada que não seja ao seu tempo. E eu não quero correr. Mame. Mame muito, o quanto for do seu desejo. Não tenho dúvidas de que seguir o tempo e respeitá-lo é o melhor caminho para se viver. Seu corpo é parte do meu corpo. E você é mais linda revelação da vida, da unicidade e do passageiro. Eterno é somente meu amor desmedido por você.

23 fevereiro, 2012

Todo dia

Amanhece. Saudamos o sol e entre tropeços espremo as laranjas, coloco-lhe chapéu, calça e camiseta. No carrinho vamos quicando pelas calçadas emburacadas, desviando dos degraus, ouvindo bem-te-vis ao longe. Você pequenina segura com as duas mãos no carrinho e procura no chão cocô de cachorro, pegada de passarinho, água que desce pela rua. E para tudo quer mais. Chegamos ao parque e saudamos borboletas que, também vem nos saudar, voam perto do nosso rosto, e você pisca alegre, gargalha. Dizemos oi para as flores, você as quer cheirar, se coloca bem perto delas, e com uma caretinha deliciosa funga seu cheiro por muito tempo, o quanto eu ali lhe deixar. As acaricia. As respeita. Então lhe conto que uma abelha virá buscar o pozinho para fazer mel, aquele mesmo que as frutinhas não muito maduras para você irá adoçar. Então descemos para areia e suas mãos se abrem inteiras na umidez profunda das pedras e terra fina, junta montinhos, espalha outros tantos e pede que lhe tire os sapatos, esparrama seus pés, pronuncia o nome das coisas, pé, chão, bom. Vê uma formiga e se joga de cara no chão com milhões de beijinhos estalados e carinhosos. Aprendemos juntas a saudar o dia e celebrar com amor todas as coisas. Na volta passarinho voa pertinho, cachorro vem cheirar. Em casa o banho lava a terra, refresca a alma e no meu peito você descansa. Essas são nossas manhãs.

20 janeiro, 2012

O vento bom

No sonho do pouco sono da última madrugada sonhei que uma linha fina me segurava por cima de um abismo, e eu balançava. Abaixo de mim tudo verde. Um desconforto no meu corpo. Uma casa antiga que no sonho se dizia a casa da infância da minha mãe, mesmo tendo para mim que ela se criou em um apartamento no Jardim Botânico. Foi quando a corda se rompeu e eu voei. Voei e mexia todo meu corpo para que isso acontecesse. E pensava comigo mesma,"quando sou eu a me colocar nas alturas, encontro prazer.Desse modo sim, sem cordas, eu, por mim mesma, a voar". Com as rédeas da minha alma agarradas à minha mão passei por entre folhas e flores roxas e naveguei pelo ar. E foi um sonho com trilha musical. Como me encanta sonhar.
Posso voar.