23 outubro, 2008

Vida curta

No meu primeiro ano de Londres e Lispa tive uma companheira nas longas viagens de ônibus após a escola. Morávamos no mesmo bairro, e estudávamos na mesma sala, por essa coincidência nos aproximamos. São as belezas das coincidências da vida, pois eu e ela provavelmente não teríamos tido tanta proximidade se não fosse esse o caso. Somos bem diferentes, nos vestimos diferente, temos uma história de vida absolutamente diferente, mas nos aproximamos, porque somos atrizes, humanas, colegas e morávamos praticamente na mesma rua.

Ela nasceu na Àfrica, mas seus pais são indianos, e ainda pequena veio para Oxford, na Inglaterra, onde cresceu e se naturalizou. Aos poucos fomos nos revelando uma a outra, durante a caminhada até o ponto de ônibus e durante a viagem. Mostrei a ela todos os meus medos, trocávamos idéias, sonhos. Eu ensinava a ela algumas palavras de português e ela, claro, me ensinava o inglês, que eu nada sabia. 

Achava gozado e admirava as surpresas que ela sempre me fazia, como descer do ônibus as pressas para ajudar uma senhora na cadeira de rodas a subir a rua íngrime, ou gritar dentro do trem para as pessoas se organizarem melhor no espaço e facilitarem a entra e saída dos outros.

Sempre ao se referir a uma pessoa ela terminava a sentença dizendo: "God bless her", o que significa Deus a abençoe, e quando comemos uma vez num restaurante chinês ela me revelou, "sempre que estou diante da minha comida penso no imenso número de pessoas que a fizeram, dos que plantaram aos que cozinharam, aos que venderam, e agradeço a todos." Confesso que achava gozado, curioso e bonito ao mesmo tempo. Por um bom tempo pude me aproximar dela e conhecer casos engraçados, tristes e belos.

Na última segunda feira recomeçaram as aulas no Lispa. O segundo ano. Agora moro do outro lado da cidade. Abracei muitos colegas, foi ótimo voltar. Mas um engasgo ficou e ainda está.

Nesse mesmo dia recebemos a notícia que a minha colega indiana-africana-inglesa não estará conosco nessa segunda parte da viagem. Sua caminhada tomou novos rumos.

Ela está com cancêr no cerébro, quatro tumores foram encontrados, e quando escrevo essa palavra e somente por escrevê-la vem o peso que lhe cabe e que me estremece.

Dizem que é terminal, coisa de um ano a mais de vida.

Ainda não falei com ela.

Não sei o que falar. Fica o silêncio.

As aulas continuam, as gargalhadas, as descobertas. O dia a dia continua. Talvez por defesa ninguém toca no assunto. Em algum lugar ela se faz presente naquela sala, ora some, ora aparece. Mas está ali. Um pouco dela fica comigo, não se perde. O Thomas nos deu a notícia e após um longo e dolorido suspiro desabafou, "É...a vida é um presente, há que desfrutar-se como se fosse o último segundo".

Nenhum comentário: